A coluna, o muro e o sentido do belo

Ensaio redigido em março de 1998, após o retorno deste arquiteto - então universitário - de sua viagem de estudos à Itália, entre janeiro e fevereiro daquele ano, ocasião nas quais as imagens que ilustram o texto foram captadas. O conteúdo foi revisado para publicação neste site em agosto de 2008, quando as notas enumeradas foram acrescidas.

Todo ser dotado de razão busca na sua existência atingir o estado da felicidade. De acordo com seu caráter há vários meios em que cada indivíduo acredita ao menos tangenciar momentos de satisfação plena: seja por riqueza, por liberdade, seja por fé e esperança, e finalmente pela vivência do amor. Inerente a qualquer possibilidade está o sentido do belo.

Antes da civilização se desconstruir em imagens geradas por mídias controladas por um inacessível mecanismo de mercado, a beleza estava nas aspirações dos idealistas, em sua maioria artistas e entre eles os arquitetos.

Mesmo os modernistas tinham o seu conceito de beleza: a verdade dos materiais, a transparência do raciocínio construtivo, a emulação do novo. No período neo-clássico o belo estava na especulação máxima dos ornamentos; já os góticos apontavam sua arquitetura para o céu, numa visão teo-centrista da questão.

Porém, nunca o sentido do belo foi tão discutido e questionado como ocorreu na Renascença (1). Entre tratados e obras, cada personalidade da época apresentava suas impressões, alinhando-se a linguagens tradicionais ou retomando – e em alguns casos propondo – conceitos inovadores para as cidades, edifícios sagrados e mesmo profanos.

É notório que a Renascença retomou a linguagem clássica do mundo antigo, concentrando-se na arquitetura greco-romana. Em conseqüência reascendem os princípios das proporções e relações matemáticas, da simetria, do equilíbrio tectônico para organização das fachadas e plantas nas construções.

No entanto, é necessário esclarecer que tais “mandamentos” atendem agora a uma cultura humanista e não mais a adoração mitológica de entidades supostamente superiores. Entre outros aspectos passou a se acreditar que o homem era em relação a Deus, o “micro-cosmos do macro-cosmos”.

O sentido do belo acompanha tal evolução: se no primeiro momento a perfeição matemática era sinal de submissão aos deuses, no segundo ela torna-se o elo que liga a humanidade ao divino.

Fundamental para a compreensão dos conceitos e da linguagem clássica do mundo antigo, é a redescoberta do tratado de Vitrúvio (2), no início do século XV, motivando posteriormente a edição de De re Aedificatória, por Leão Batista Alberti (3), posteriormente o maior teorizador da arte que o Quatrocento produziu.

Atualmente uma parcela dos historiadores contesta a caracterização do texto de Vitrúvio como tratado, alegando que este é apenas um manual que relata as técnicas e maneiras construtivas do mundo antigo, citando elementos ornamentais e ordens, mas sem justificar ou discutir o conteúdo apresentado; ao passo que Alberti o faz com o respaldo de outros dois tratados: sobre a pintura e a escultura, além da apresentação de suas idéias na prática, coma edificação de quatro igrejas e um palácio.

Alberti, como demonstra Wittkower (4), era partidário da afirmação grega de que o principal elemento da arquitetura é a coluna e sua respectiva ordem. É possível imaginar, portanto, a perplexidade albertiana ao defrontar-se com a Roma Antiga, repleta de exemplos onde predomina a edificação através do sistema de arcos e muros, no qual a coluna perde sua expressividade tectônica quando adoçada a uma superfície.

De fato, a questão da coluna e do muro é de relevância na produção intelectual e arquitetônica de Alberti, sendo tema de uma discussão proposta por estudiosos no assunto, já no século XX. Mais uma vez Wittkower relata – inclusive – a mudança na teoria de Alberti sobre a coluna, no decorrer de sua carreira, convertendo-a em pilastra, como uma forma melhor adequada ao muro.

Talvez a síntese de tal raciocínio possa ser compreendida na obra aclamada como a mais completa no conjunto albertiano: Sant´Andrea em Mantova (5). Nela está presente a importância da coluna, já convertida em pilastra, adoçada ao muro, porém organizando o espaço em instância crucial. O sistema construtivo é mural, mas a relevância – sobretudo – está no fato de os arcos, dispostos em sentidos perpendiculares, respeitarem um complexo ritmo que os especialistas denominam como “rhythmische Travée”, composto neste caso por dois intercolúnios.

Igreja albertianaFachada da Igreja de Sant´Andrea em Mantova: projeto de Alberti.

A relação entre cheios e vazios, responsável por um dos motivos da admiração dos transeuntes, resulta do equilíbrio da conjunção do sistema mural com as “colunas”, se levarmos em conta que apenas a presença das paredes implicaria numa arquitetura monótona e apenas a presença de colunas nos remeteria aos templos gregos antigos, perfeitos matematicamente - mas inabitáveis, quando expostos às intempéries. O que não implica necessariamente no fracasso dos extremos da questão “coluna e muro”. Para tanto observa-se dois exemplos, um anterior e outro posterior a Alberti.

O primeiro é o interior da Basílica de São Lorenzo em Firenze (6), reformulado por Filippo Brunelleschi (7), onde a seqüência de colunas tem seu significado clássico submetido ao raciocínio matemático do arquiteto, com o objetivo de identificar um espaço revelador da perspectiva com ponto de fuga central. Tão pouco é preciso enfatizar o caráter universal da obra, assim como a revolucionária maneira de representação espacial proposta por Brunelleschi.

Marco florentinoInterior da Basílica de São Lorenzo em Firenze. Obra de Brunelleschi.

Atento, porém, às características do local está Giulio Romano (8), que ao projetar a própria residência em Mantova, se depara com uma terra pantanosa e escassa em pedras, apesar disso o intento do artista é assumir a importância do sistema mural também como expressão arquitetônica. Observa-se na fachada – atualmente encrustada entre dois edifícios – o rusticamento em seu revestimento, afinal de contas o que se vê não são pedras talhadas que elevam o edifício, mas sim o estuque trabalhado em retículas, enriquecidas pelo efeito “luz e sombra” acentuando e percepção de cada bloco.

Residência em MantovaResidência do arquiteto Giulio Romano em Mantova.

É curioso notar que se em Giulio Romano o muro que se vê não é o muro que sustenta, as colunas de Brunelleschi em São Lorenzo não respeitam a uma ordem tradicional específica, mas à estrutura da perspectiva. Essa é a vantagem de Alberti em Sant´Andrea: em nenhum momento discute-se a autenticidade de seus elementos construtivos, e sim o que eles representam na compreensão do espaço.

Deste ponto de vista, poderíamos considerar Sant´Andrea como a mais bela dos três exemplos citados? Para um modernista talvez, mas não quando o enfoque se torna atemporal e desprovido de preconceitos...

Comprova-se com isso que o sentido do belo possui duas faces: a que muda com a evolução cronológica das tecnologias e culturas, e a face de caráter universal e eterno, que permite a uma obra ser reconhecida como bela independente de seu período histórico.

É importante ressaltar, por fim, a diferença entre eterno e perpétuo: não existe beleza perpétua, pois não faria sentido construirmos no limiar do século XXI utilizando-se das mesmas técnicas do tempo da Renascença, quando já dominamos outras, mais eficazes. Mas existe a beleza eterna, onde mais importante que a construção – que se deteriora com o passar dos anos – são as idéias e questões implícitas, refletindo o pensamento crítico de uma época.

Notas:

(1) Renascença – período na história ocidental entre os séculos XV e XVI, compreendido como a transição entre a Idade Média e a Idade Moderna, devido ao seu caráter transformador nos campos das ciências e das artes.

(2) Marcos Vitrúvio Polião – arquiteto e engenheiro romano que viveu no século I antes de Cristo, sendo autor do tratado De Architectura – escrito em dez volumes, considerado uma referência obrigatória para a arquitetura clássica.

(3) Leão Batista Alberti – humanista e arquiteto genovês do século XV que encarnou o conceito de “uomo universale” do renascimento, por ser versado também na pintura, música e escultura, além da formação em Direito.

(4) Rudolf Wittkower – historiador, crítico de arquitetura e teórico do século XX, autor do livro Los fundamentos de la arquitectura en la edad del humanismo, ainda não disponível em português.

(5) Mantova – conhecida em português como “Mântua”, é uma cidade da região da Lombardia, norte da Itália. Apesar de sua população de menos de 50 mil habitantes, sua origem é de dois mil anos antes de Cristo.

(6) Firenze – denominada “Florença” por parte dos portugueses, é considerada a capital do Renascimento italiano, situando-se na região da Toscana. É a terra natal de Dante Alighieri, autor da Divina Comédia.

(7) Filippo Brunelleschi – arquiteto florentino nascido no final do século XIV, considerado o “pai” da racionalidade na arquitetura, a quem se atribui o desenvolvimento das técnicas de perspectiva na elaboração de projetos.

(8) Giulio Romano – nascido Giulio Pippi em fins do século XV, foi discípulo do célebre pintor Rafhael, de quem herdou parte de sua herança. Além da pintura, atuou também como arquiteto e urbanista em Mantova.

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