Desenho Universal em foco no Guia da Construção do Estadão PME em 2012

Reprodução da capa da publicação.

O Guia do Estadão PME - Pequenas e Médias Empresas - da Construção é um anuário dos mais importantes do setor no Brasil, com a tiragem de 70 mil exemplares distribuídos em todo o território nacional, nas lojas e empresas do ramo da construção civil. Para 2012, a pauta de uma das matérias que antecedem a lista de anunciantes era sobre acessibilidade e desenho universal. Para elaborar o artigo, a jornalista Renata Bernardis entrou em contato com alguns profissionais com domínio sobre o tema. O arquiteto Jean Tosetto foi um deles. Em dezembro de 2011 ele concedeu uma entrevista e forneceu diversas imagens para a elaboração da reportagem. As respostas serviram de base para o texto final e, obviamente, não haveria espaço editorial para reproduzir todas as respostas na íntegra, que agora são publicadas neste site.


As rampas para cadeirantes em passeios públicos devem ser acompanhadas por faixa de pedestres e ter inclinação máxima de 8,33%.

1) O desenho universal é a palavra-chave para alcançar a acessibilidade? Por que?

A acessibilidade universal não é um conceito que pode se pensado e executado apenas com o pretenso bom senso ou com boa vontade. É preciso ter conhecimento específico e capacidade técnica para planejar e executar móveis, edificações e espaços urbanos que sejam acessíveis para o maior número possível de cidadãos. O estudo do desenho universal é a mola mestra que dá embasamento para a produção de normas técnicas, que depois serão exigidas por leis que, se devidamente fiscalizadas, trarão benefícios para toda a sociedade.

 2) O modo de projetar virou lei, mas é seguido? Quem segue? Quem fiscaliza? No Brasil todo? Desde quando?

No Brasil existem leis que pegam e leis que não pegam. Desde dezembro de 2004 todos os profissionais envolvidos com projetos de edificações – engenheiros, arquitetos e urbanistas – são obrigados a atender as Normas Técnicas de Acessibilidade da ABNT em obras de construção, reforma ou ampliação de espaços de uso público ou coletivo. Ficam de fora as residências unifamiliares.

A primeira etapa de fiscalização começa na aprovação do projeto nas prefeituras municipais. Aí acontece a primeira lacuna, num país de dimensões continentais, onde muitas prefeituras sequer possuem um engenheiro contratado para analisar os projetos. Porém, em muitos casos a fiscalização tem sido rigorosa, especialmente nas licitações públicas.

3) Quais são as leis? 

Existem duas Leis Federais – nº 10.048 de 8 de novembro de 2000 e nº 10.098 de 19 de dezembro de 2000 – que foram regulamentadas pelo Decreto 5.296 de 2 de dezembro de 2004, onde se que lê que elas estabelecem “normas gerais e critérios básicos para a promoção da acessibilidade das pessoas portadoras de deficiência ou com mobilidade reduzida.”

Com relação à normas técnicas, a ABNT – Associação Brasileira de Normas Técnicas - lista 19 NBRs relacionadas direta ou indiretamente com pessoas portadoras de necessidades especiais, das quais se destaca a NBR 9050 – Acessibilidade a Edificações, Mobiliário, Espaços e Equipamentos Urbanos.

4) Quais são os parâmetros estipulados em normas e que podem ser discutidos, cobrados pela sociedade e fiscalizados pelas autoridades?

O problema com as normas técnicas no Brasil, é que elas são desenvolvidas por uma entidade de direito privado que naturalmente não as disponibilizam gratuitamente ao público, dificultando a disseminação deste tipo de conhecimento para a maior parte da população. Por isso o Ministério Público propôs um termo de ajustamento de conduta para publicar as normas relativas a acessibilidade universal na Internet.

A principal fiscalização é feita pelo próprio cidadão, desde que ele tenha conhecimento das normas. Por exemplo, se um cadeirante ingressa numa loja, pede para usar um sanitário e se vê impedido de fazer isso, ele pode fazer uma denúncia formal ao Ministério Público, que a princípio convocará, para prestar esclarecimentos, o escritório que projetou a loja, a prefeitura que aprovou o projeto, a construtora responsável pela obra, e finalmente o proprietário da edificação. Se o arquiteto demonstrar que fez o projeto corretamente e a prefeitura consequentemente aprovou o projeto, ambos serão notificados por não terem fiscalizado a construção. Já o empreiteiro e o dono do imóvel se encontrarão numa situação mais difícil. De todo modo, outro termo de ajustamento de conduta será feito, estipulando um prazo razoável para a correção da demanda.

Motociclista usa a rampa para estacionar - a população brasileira ainda precisa se conscientizar sobre o direito de acessibilidade de terceiros.

A comunicação entre ambientes internos e externos deve ser livre de degraus – o acabamento dos pisos deve ser anti-derrapante.

5) O governo pode ser exemplo a ser seguido? Ele tem dado esse exemplo?

Em linhas gerais, tanto os governos nas três esferas – municipal, estadual e federal – quanto a iniciativa privada, estão praticamente no mesmo estágio em relação à acessibilidade universal. O que existem são exemplos pontuais, que aos poucos vão se multiplicando, e torcemos para que este processo se acelere cada vez mais. Poderíamos citar as estações do metrô de São Paulo como uma iniciativa pioneira que, antes de qualquer promulgação de lei, já se preocupava com esta questão. Aliás, a cidade de São Paulo foi a primeira capital brasileira a criar uma CPA – Comissão Permanente de Acessibilidade. Na cidade catarinense de Blumenau, temos o centro urbano remodelado já há mais de 10 anos, levando em conta vários princípios de acessibilidade.

E mais recentemente, há menos de um ano, a Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos promoveu um programa de reforma, adequação e padronização das agências franqueadas, exigindo o total respeito à acessibilidade universal. Tive inclusive a oportunidade de trabalhar em dois casos e, num deles, foi necessário propor uma pequena intervenção urbanística para facilitar o acesso das pessoas com necessidades especiais, com a criação de rampas nos dois passeios públicos da rua, interligadas por uma faixa de segurança para pedestres, com demarcação de vagas para idosos no leito carroçável.

6) O que prega o desenho universal? Por que surgiu?

O conceito primário do desenho universal surge praticamente embutido com o primeiro projeto de arquitetura, há mais de dois mil anos. Quando você tem a oportunidade de ler o Tratado do Vitrúvio - um arquiteto romano da era clássica – poderá encontrar diversas menções relativas à escala humana. Um exemplo muito claro está, curiosamente, no desenho que Leonardo Da Vinci fez do “Homem Vitruviano”, que nada mais é do que uma tentativa de estabelecer uma espécie de módulo baseado nas proporções humanas, a partir do qual qualquer projeto poderia ser desenvolvido.

Quando, popularmente, convencionamos que a altura padrão de uma porta é próxima de 2,20 metros, estamos praticamente incluindo nesta medida a quase totalidade dos seres humanos – o que em tese é o objetivo do desenho universal: democratizar o uso de produtos, edificações e cidades para todas as pessoas, não somente as consideradas “normais”. Se o conceito já é antigo, a denominação do termo surgiu apenas na década de 1960, no ambiente universitário dos Estados Unidos. Mas não devemos nos esquecer dos alemães, que foram uns dos pioneiros na elaboração de muitas normas técnicas. Cabe mencionar que, entre os estudantes de arquitetura, há um livro de fácil referência, que apesar de datado dos anos de 1940, ainda funciona como uma introdução ao tema: “A Arte de Projetar em Arquitetura”, que é mais conhecido apenas pelo sobrenome do autor, Ernst Neufert.


O podotátil, espécie de piso em alto relevo, serve para orientar deficiente visuais – os lineares indicam a continuidade do caminho, já os circulares significam mudança de direção e limite do percurso.

Parte dos guichês de atendimento devem ser mais baixos e permitir que os cadeirantes se aproximem dos interlocutores – vide cavidade abaixo do tampo.

7) Quais as vantagens?

A grande vantagem do desenho universal é a inclusão social, sem dúvida.

Não basta fazer uma lei para obrigar as empresas de maior porte a reservar vagas de emprego para pessoas com deficiência física, se elas não conseguem chegar ao local de trabalho, então, quando uma cidade como Curitiba investe milhões de reais em planejamento urbano e cria um sistema de transporte coletivo no qual as pessoas não precisam subir verdadeiros degraus de arquibancada para entrarem nos ônibus, vemos que mais pessoas participam do mercado de trabalho, pois, de certo modo, o sistema de transporte oferece mais autonomia para a população.

E quem não gosta de ir ao Shopping Center? Em Campinas, um dos maiores centros comerciais da América Latina foi inaugurado com alguns conceitos de acessibilidade que até então não eram vistos em outros empreendimentos. Os administradores do local gentilmente passaram a oferecer cadeiras de rodas em alguns pontos específicos. O resultado é que o Shopping passou a ser frequentado por mais portadores de deficiência e idosos. No começo houve até um estranhamento por parte dos consumidores habituais, que logo assimilaram a ideia, causando uma reação saudável na concorrência.

Quando você democratiza a cidade para todos, mais gente participa da economia ativa e todos ganham com isso.

8) O desenho universal é bom para todos ou ele preconiza apenas cadeirantes e pessoas com mobilidade reduzida? Quantas pessoas com restrição no Brasil?

O grande desafio do desenho universal é que ele ser deve ser bom para todos, independentemente da existência de necessidades especiais ou não. Se ele atende aos cadeirantes, certamente será bom também para os caminhantes. Crianças, jovens, adultos ou idosos, magros, obesos ou atléticos – o leque é bem extenso. E dentro do universo de pessoas com necessidades especiais, não ficam apenas os cadeirantes ou aqueles com mobilidade reduzida, pois devemos incluir também as deficiências de visão e audição em diversos graus, e ainda lembrar daqueles com dificuldades intelectuais variadas. Esta, a bem da verdade, é uma noção que ainda precisa ser esclarecida para a população em geral.

Pessoalmente, não arriscaria uma porcentagem precisa de brasileiros com necessidades especiais. Fala-se em 15% da população, algo em torno de 28 milhões de pessoas, mas acredito que este número seja até maior, se englobarmos todos os tipos de deficiências, pois em cada família há pelo menos uma pessoa com alguma necessidade especial. Podemos não ter a consciência de que sejam muitas pessoas, uma vez que nossas cidades, em sua imensa maioria, não são acessíveis. Portanto não vemos esse contingente nas ruas com grande frequência.

As portas dos sanitários de acesso universal devem abrir para fora do ambiente e possuir largura suficiente para a passagem de cadeira de rodas ou pessoa portadora de muletas.

A sinalização em cores contrastantes – no caso um padrão da EBCT - facilita a identificação dos ambientes de uma edificação de uso público ou coletivo. 

9) É possível fazer adaptações nas obras prontas ou o ideal é fazer antes, pensar na questão antes da construção?

Algumas adaptações em obras prontas são possíveis, a depender de uma série de aspectos, que vão dos recursos financeiros, passam pelas limitações técnicas e de qualidade de mão de obra e esbarram, por vezes, em questões legais, quando o imóvel pertence a terceiros ou está tombado por uma entidade de defesa do patrimônio histórico e cultural. O ideal, sempre, é pensar neste conjunto de medidas ainda na fase de estudo do projeto da obra, e as vezes até antes, quando por exemplo um terreno está sendo avaliado para compra – pode ocorrer que o lote em questão seja inviável para o objetivo da construção, devido as suas dimensões, declividade e zoneamento urbano.

10) Quem pensa no desenho universal? O arquiteto, o engenheiro, o designer? É possível um trabalho conjunto?

A questão não é exatamente responsabilizar ou priorizar um tipo de profissional - e esquecemos de mencionar o urbanista. O que manda é o projeto como um todo, então cabe ao coordenador do projeto cobrar dos demais profissionais o comprometimento com o desenho universal. Se uma cidade decide implantar uma praça intercalada com uma ampla avenida, cabe ao urbanista dar as diretrizes do projeto. Na outra ponta, quando um designer recebe a encomenda para desenvolver um nova cadeira para uma estação de trabalho, cabe a ele pensar no desenho universal, que engloba a ergonomia e a usabilidade. Isso vale até para indústria automotiva, cujo coordenador de projeto não precisa ser necessariamente um engenheiro, mas um executivo responsável, que muitas vezes teve formação em outra área. O trabalho em conjunto, no desenvolvimento de produtos e edificações, só é possível quando existem coordenadores de projetos.


A bacia sanitária do sanitário acessível contém barras de apoio, distância mínima de 50 cm de seu eixo em relação ao vértice do cômodo e dianteira rebaixada para auxílio de higienização.

A coluna da pia acessível é suspensa em relação ao chão, para facilitar a aproximação da cadeira de rodas – da mesma forma ela conta com barra de apoio e distância do canto da câmara.

11) Projetos que preconizam o desenho universal são mais caros? Por que?

Projetos que levam em conta o desenho universal levam mais tempo para serem desenvolvidos e requerem profissionais mais capacitados, que não são encontrados com facilidade.

Além do mais, projetos de arquitetura e urbanismo que priorizam a acessibilidade universal tendem a ocupar mais área, exigindo mais recursos na compra de terrenos e na execução da obra. Uma vaga de estacionamento para cadeirante ocupa um espaço 50% maior do que uma vaga convencional. O mesmo se aplica para sanitários que tenham uma pia e uma bacia sanitária. A largura de um corredor de circulação interna de uma edificação precisa ser, no mínimo, 20% maior do que a habitual. Logicamente existem outras áreas que não sofrem muitas alterações, mas se consideramos um aumento médio de 10 a 15% na área final, chegaremos numa diferença considerável.

12) É possível preconizar o desenho universal num País onde a prioridade é construir moradia para 8 milhões de desabrigados? Alias, um projeto para habitação tem essa preocupação?

Não devemos tratar isso como uma possibilidade, mas como uma obrigação. Atualmente os conjuntos habitacionais financiados com recursos públicos, compostos por prédios de três a quatro andares sem elevadores, reservam alguns apartamentos do pavimento térreo para pessoas da terceira idade ou portadores de necessidades especiais. Ocorre que a expectativa de vida do brasileiro está aumentando a cada década e cada vez mais teremos pessoas na terceira idade, em comparação com as pessoas mais jovens, pois nossa taxa de natalidade está estabilizando. É uma questão de tempo para a equação não fechar mais.

Se não investirmos na acessibilidade universal em nossas moradias públicas e privadas, pagaremos uma conta muito alta dentro de 30 ou 40 anos. Infelizmente a classe média, que pode financiar a compra da casa própria, no caso dos apartamentos, é a que mais vai sofrer. Basta analisar as plantas publicadas nos folhetos promocionais, cujos banheiros sociais são oferecidos com apenas 1,25 metro de largura, quando o mínimo aceitável seria 1,50 metro e o ideal seria 1,80 metro. As famílias que estão sacrificando suas economias agora, vão precisar de novos apartamentos no futuro, numa época que a fonte de renda vai cair de forma irremediável.

Lamentavelmente as residências unifamiliares não são obrigadas a se adequar à lei de acessibilidade, então cabe ao profissional responsável pelo projeto ser consciente e abordar este assunto ainda na encomenda do primeiro desenho. Por exemplo: se uma família sonha em morar num sobrado - e ninguém seria louco de instalar um elevador numa casa de pequeno porte - cabe ao projetista colocar em discussão, com os contratantes, a necessidade de criar ao menos um ambiente no pavimento térreo que possa ser convertido num dormitório. Pode ser uma sala de TV ou um escritório, mas o lavabo social precisa prever espaço para instalação de um chuveiro, e assim por diante.

O arquiteto Jean Tosetto no hall de seu escritório.

Sobre o entrevistado:

Jean Tosetto é Arquiteto e Urbanista formado pela FAU PUC Campinas. Desde 1999 já realizou mais de 200 projetos – em sua maioria residenciais e comerciais, mas também institucionais e industriais – especialmente na cidade de Paulínia (interior de São Paulo), onde é radicado, e Região Metropolitana de Campinas.

Em 2003 fez sua primeira imersão profissional no campo da acessibilidade, ao desenvolver o projeto residencial de sua avó paterna, então convalescente numa cadeira de rodas na cidade de Caçapava, no Vale do Paraíba paulista. Já em 2005 participou do "Curso de Capacitação Técnica em Acessibilidade e Mobilidade Urbana" ministrado por membros do Grupo Técnico de Acessibilidade do CREA-SP – Conselho Regional de Engenharia, Arquitetura e Agronomia de São Paulo – na Unicamp.

No ano de 2006 teve uma experiência como professor universitário convidado pela efêmera Faculdade de Administração Pública de Paulínia, que através do Núcleo de Estudos de Transporte e Mobilidade e do Núcleo de Estudos de Habitação ministrou respectivamente as disciplinas de “Mobilidade Urbana e Transportes” e “Habitação Social”. Nesta ocasião, conduziu junto com seus alunos um criterioso estudo sobre as condições de acessibilidade na região central de Paulínia, resultando num relatório entregue à autoridades municipais, quando atuou como membro do COMPHACT - Conselho Municipal do Patrimônio Histórico, Ambiental, Cultural e Turístico do Município de Paulínia, no biênio de 2007 e 2008.

Em 2009 concluiu a construção da própria residência e escritório, onde vários aspectos, não só da acessibilidade universal, como também a respeito da sustentabilidade ambiental e econômica, foram executados. Desde então vem colaborando com publicações diversas relacionadas a estes temas, aplicando tais conceitos, sempre que possível, nos projetos em que atua.

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