Por Jean Tosetto *
Em 2006 fui convidado para ministrar um curso sobre mobilidade urbana para alunos da efêmera Faculdade de Administração Pública de Paulínia. Um dos exercícios mais interessantes que propus foram visitas comparativas entre o centro comercial tradicional de Campinas e um Shopping Center localizado na Rodovia Dom Pedro.
Elaborei um questionário que funcionou como um roteiro elucidativo para destacar as diferenças fundamentais entre os dois tipos de espaços. A primordial todos já sabiam: o centro da cidade era um espaço público e o Shopping era um espaço privado, embora de acesso público. Passados alguns anos, tal exercício continua válido, diante de cenários que praticamente não se alteraram.
Para entrar num Shopping, geralmente você desce de um ônibus coletivo ou deixa o carro num bolsão de estacionamento, caminha 100, 200 ou mesmo 300 metros até ingressar por uma porta convidativa. Os carros e os ônibus ficam do lado de fora. E no centro da cidade? Os carros passam a poucos centímetros das vitrines das lojas, propagando fumaça e barulho para os pedestres. Só neste aspecto temos duas questões: a poluição ambiental e a poluição sonora.
No centro da cidade, nossos ouvidos são bombardeados por buzinas e vendedores falando ao megafone. Fora aqueles carros de som, sempre com o volume mais alto do que o aceitável. No Shopping a música ambiente é controlada. Os limites estão claramente estabelecidos.
A poluição visual também é um agravante. Nas ruas das cidades, cada loja procura chamar mais atenção do que a concorrência. Luminosos escondem as fachadas originais dos prédios e uma profusão de ofertas é praticamente pichada em cartazes. Os postes de energia, repletos de placas e papéis colados, carregam fios expostos que deturpam qualquer intenção de qualidade estética.
Já nos Shoppings, as vitrines também guardam diferenças entre si, mas existem certos padrões com relação à largura e altura de cada loja, e cada ponto comercial só funciona se apresentar um rigoroso projeto de arquitetura de interiores à administração do local.
Os corredores dos Shoppings, sempre de boa largura e acabamento padronizado para favorecer a circulação das pessoas, são livres de degraus não planejados, desníveis, buracos e manchas de chiclete - que considero um símbolo perfeito para a falsa noção de espaço público, difundida no Brasil. Caminhe pelas ruas brasileiras e comece a contar as marcas de chiclete no chão. As pessoas cospem isso no espaço público, pois consideram que este não possui dono, quando na verdade todos nós somos proprietários dele.
Os chicletes mastigados deveriam ser jogados em lixeiras, mas elas praticamente não existem nas ruas, e são abundantes nos Shoppings. Além do mais, os Shoppings possuem sanitários limpos, escadas rolantes, ar condicionado e vigilância permanente.
O Estado ausente
Se perguntarmos para a maioria das pessoas o motivo pelo qual elas preferem ir ao Shopping do que ao centro da cidade, elas vão citar justamente a questão da segurança, esquecendo de todo o resto. Mas é todo o resto que faz a diferença, e mesmo que os produtos e serviços oferecidos nos Shoppings sejam mais caros em função destes diferenciais, tais lugares continuam atraindo mais gente, deixando para o comércio de rua a opção de diminuírem a margem de lucro, trabalhando com artigos mais populares.
Alguns centros comerciais, em função de seus preços mais acessíveis, continuam sendo bem movimentados, mas eles deixaram de ser um programa para famílias que buscam lazer além das compras. É por isso que nossas praças públicas ficaram desertas nos fins de semana.
Como os gestores públicos podem reverter ou ao menos equilibrar esta tendência? Em primeiro lugar ocupando o espaço público com o policiamento comunitário, mas também adotando leis para regular a comunicação visual, padronizar as calçadas e dotá-las de acessibilidade universal. E o mais difícil: alterar o sistema viário para recuperar as vias públicas para os pedestres, que sim, são mais importantes do que os carros.
Logicamente várias outras medidas são necessárias, que os agentes públicos não podem tirar de uma cartola, como num passe de mágica. É neste momento que o papel do urbanista é fundamental.
A premência do urbanista
Com a criação do CAU – Conselho de Arquitetura e Urbanismo – no começo da década de 2010, todos os arquitetos passaram a ser denominados também como urbanistas. Porém, na prática, poucos arquitetos atuam realmente como urbanistas: a maioria está enclausurada nas atividades acadêmicas e os poucos que trabalham na iniciativa privada são responsáveis justamente pelos melhores condomínios e loteamentos fechados das grandes cidades.
É muito difícil ver um urbanista trabalhando como urbanista em qualquer prefeitura. Em regra geral, os departamentos de planejamento urbano das cidades são tocados por engenheiros, desenhistas práticos e até por profissionais de outras áreas, colocados ali mediante cargos de confiança. A situação ideal seria que cada prefeitura pudesse contar com um escritório municipal de urbanismo, para municiar legisladores e gestores públicos com soluções para curto, médio e longo prazo.
Como arquiteto e urbanista, faço um “mea-culpa”. Nós, urbanistas, não conseguimos articular um discurso compreensível para a população e para classe política, justificando a importância de nossa atuação. Os urbanistas gostam muito de participar de congressos e palestras, para tomar café a vontade e sonhar com a cidade ideal. A realidade lá fora indica que os urbanistas não participam do planejamento e do crescimento das cidades, tarefa que fica sob a tutela de políticos mesclados com grandes especuladores imobiliários.
A julgar pelos novos condomínios e loteamentos fechados que estão sendo lançados a cada ano, posso atestar que os urbanistas que atuam em seus projetos são muito competentes. Muitas das regras adotadas nestes empreendimentos são as mesmas que valem para loteamentos abertos, como por exemplo, o recuo frontal mínimo de quatro a seis metros, e a proibição de construção de mais de uma casa por lote.
É interessante notar que as pessoas, assim como preferem pagar mais caro pela mesma camisa polo num Shopping, procuram os loteamentos fechados para morar. Elas se sujeitam a respeitar as regras internas, que muitas vezes seriam desrespeitadas lá fora – os puxadinhos e as casas geminadas estão aí para provar. Por alguma razão as pessoas acreditam que, respeitando as regras, a valorização de seus imóveis estará garantida.
Neste ponto voltamos à noção de espaço público. Se as regras são parecidas, como fazer para alterar a cultura de que espaço público é espaço de ninguém? Se todos nós respeitarmos as regras que já existem, vamos recuperar também a qualidade de vida em nossas cidades. Isso vale tanto para as residências como para o comércio.
Fiscalizar é preciso
Muitas vezes, as regras só são respeitadas quando existe fiscalização. Em qualquer Shopping existe muita fiscalização interna, embora ela pareça camuflada. Associações de loteamentos fechados e condomínios contratam engenheiros e arquitetos para fiscalizarem o andamento das obras e avaliar os projetos para construção.
Infelizmente as cidades pecam por não investir em fiscalização nos espaços públicos e loteamentos abertos. Esse é o tipo de atividade que costuma ser impopular e, como todo brasileiro sabe, os políticos em sua maioria pensam mais na próxima eleição do que propriamente no bem da cidade.
Por isso, o tecido urbano das cidades está cada vez mais desorganizado, os entulhos se acumulam em terrenos baldios, os sacos de lixos transbordam em bocas de lobo e as edificações estão cada vez menos iluminadas e ventiladas naturalmente.
Neste ciclo viciado, cada vez mais as pessoas vão procurar refúgio momentâneo dentro de Shoppings e loteamentos fechados. Se a noção do espaço público como terra de ninguém prevalecer, então os centros tradicionais estarão condenados à decadência - o mesmo valendo para os loteamentos abertos e as periferias, sempre esquecidas pelos agentes públicos.
É isto que desejamos para as nossas cidades? Claro que não. Então precisamos comprar mais do que roupa e comida nos Shoppings: precisamos comprar as boas ideias que seus gestores privados talvez não queiram vender, mas que são de graça.
* Jean Tosetto é arquiteto e urbanista formado pela FAU PUC de Campinas, tem escritório próprio desde 1999 e é autor do livro "MP Lafer: a recriação de um ícone", publicado em 2012.
Veja também:
A casa conceito: idéias para construir em novos tempos
Inclusão via desenho universal
O espelho da democracia
V - Desenvolvimento urbano
I - A inclusão social pela mobilidade urbana
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Em 2006 fui convidado para ministrar um curso sobre mobilidade urbana para alunos da efêmera Faculdade de Administração Pública de Paulínia. Um dos exercícios mais interessantes que propus foram visitas comparativas entre o centro comercial tradicional de Campinas e um Shopping Center localizado na Rodovia Dom Pedro.
Elaborei um questionário que funcionou como um roteiro elucidativo para destacar as diferenças fundamentais entre os dois tipos de espaços. A primordial todos já sabiam: o centro da cidade era um espaço público e o Shopping era um espaço privado, embora de acesso público. Passados alguns anos, tal exercício continua válido, diante de cenários que praticamente não se alteraram.
Para entrar num Shopping, geralmente você desce de um ônibus coletivo ou deixa o carro num bolsão de estacionamento, caminha 100, 200 ou mesmo 300 metros até ingressar por uma porta convidativa. Os carros e os ônibus ficam do lado de fora. E no centro da cidade? Os carros passam a poucos centímetros das vitrines das lojas, propagando fumaça e barulho para os pedestres. Só neste aspecto temos duas questões: a poluição ambiental e a poluição sonora.
No centro da cidade, nossos ouvidos são bombardeados por buzinas e vendedores falando ao megafone. Fora aqueles carros de som, sempre com o volume mais alto do que o aceitável. No Shopping a música ambiente é controlada. Os limites estão claramente estabelecidos.
A poluição visual também é um agravante. Nas ruas das cidades, cada loja procura chamar mais atenção do que a concorrência. Luminosos escondem as fachadas originais dos prédios e uma profusão de ofertas é praticamente pichada em cartazes. Os postes de energia, repletos de placas e papéis colados, carregam fios expostos que deturpam qualquer intenção de qualidade estética.
Já nos Shoppings, as vitrines também guardam diferenças entre si, mas existem certos padrões com relação à largura e altura de cada loja, e cada ponto comercial só funciona se apresentar um rigoroso projeto de arquitetura de interiores à administração do local.
Os corredores dos Shoppings, sempre de boa largura e acabamento padronizado para favorecer a circulação das pessoas, são livres de degraus não planejados, desníveis, buracos e manchas de chiclete - que considero um símbolo perfeito para a falsa noção de espaço público, difundida no Brasil. Caminhe pelas ruas brasileiras e comece a contar as marcas de chiclete no chão. As pessoas cospem isso no espaço público, pois consideram que este não possui dono, quando na verdade todos nós somos proprietários dele.
Os chicletes mastigados deveriam ser jogados em lixeiras, mas elas praticamente não existem nas ruas, e são abundantes nos Shoppings. Além do mais, os Shoppings possuem sanitários limpos, escadas rolantes, ar condicionado e vigilância permanente.
O Estado ausente
Se perguntarmos para a maioria das pessoas o motivo pelo qual elas preferem ir ao Shopping do que ao centro da cidade, elas vão citar justamente a questão da segurança, esquecendo de todo o resto. Mas é todo o resto que faz a diferença, e mesmo que os produtos e serviços oferecidos nos Shoppings sejam mais caros em função destes diferenciais, tais lugares continuam atraindo mais gente, deixando para o comércio de rua a opção de diminuírem a margem de lucro, trabalhando com artigos mais populares.
Alguns centros comerciais, em função de seus preços mais acessíveis, continuam sendo bem movimentados, mas eles deixaram de ser um programa para famílias que buscam lazer além das compras. É por isso que nossas praças públicas ficaram desertas nos fins de semana.
Como os gestores públicos podem reverter ou ao menos equilibrar esta tendência? Em primeiro lugar ocupando o espaço público com o policiamento comunitário, mas também adotando leis para regular a comunicação visual, padronizar as calçadas e dotá-las de acessibilidade universal. E o mais difícil: alterar o sistema viário para recuperar as vias públicas para os pedestres, que sim, são mais importantes do que os carros.
Logicamente várias outras medidas são necessárias, que os agentes públicos não podem tirar de uma cartola, como num passe de mágica. É neste momento que o papel do urbanista é fundamental.
A premência do urbanista
Com a criação do CAU – Conselho de Arquitetura e Urbanismo – no começo da década de 2010, todos os arquitetos passaram a ser denominados também como urbanistas. Porém, na prática, poucos arquitetos atuam realmente como urbanistas: a maioria está enclausurada nas atividades acadêmicas e os poucos que trabalham na iniciativa privada são responsáveis justamente pelos melhores condomínios e loteamentos fechados das grandes cidades.
É muito difícil ver um urbanista trabalhando como urbanista em qualquer prefeitura. Em regra geral, os departamentos de planejamento urbano das cidades são tocados por engenheiros, desenhistas práticos e até por profissionais de outras áreas, colocados ali mediante cargos de confiança. A situação ideal seria que cada prefeitura pudesse contar com um escritório municipal de urbanismo, para municiar legisladores e gestores públicos com soluções para curto, médio e longo prazo.
Como arquiteto e urbanista, faço um “mea-culpa”. Nós, urbanistas, não conseguimos articular um discurso compreensível para a população e para classe política, justificando a importância de nossa atuação. Os urbanistas gostam muito de participar de congressos e palestras, para tomar café a vontade e sonhar com a cidade ideal. A realidade lá fora indica que os urbanistas não participam do planejamento e do crescimento das cidades, tarefa que fica sob a tutela de políticos mesclados com grandes especuladores imobiliários.
A julgar pelos novos condomínios e loteamentos fechados que estão sendo lançados a cada ano, posso atestar que os urbanistas que atuam em seus projetos são muito competentes. Muitas das regras adotadas nestes empreendimentos são as mesmas que valem para loteamentos abertos, como por exemplo, o recuo frontal mínimo de quatro a seis metros, e a proibição de construção de mais de uma casa por lote.
É interessante notar que as pessoas, assim como preferem pagar mais caro pela mesma camisa polo num Shopping, procuram os loteamentos fechados para morar. Elas se sujeitam a respeitar as regras internas, que muitas vezes seriam desrespeitadas lá fora – os puxadinhos e as casas geminadas estão aí para provar. Por alguma razão as pessoas acreditam que, respeitando as regras, a valorização de seus imóveis estará garantida.
Neste ponto voltamos à noção de espaço público. Se as regras são parecidas, como fazer para alterar a cultura de que espaço público é espaço de ninguém? Se todos nós respeitarmos as regras que já existem, vamos recuperar também a qualidade de vida em nossas cidades. Isso vale tanto para as residências como para o comércio.
Fiscalizar é preciso
Muitas vezes, as regras só são respeitadas quando existe fiscalização. Em qualquer Shopping existe muita fiscalização interna, embora ela pareça camuflada. Associações de loteamentos fechados e condomínios contratam engenheiros e arquitetos para fiscalizarem o andamento das obras e avaliar os projetos para construção.
Infelizmente as cidades pecam por não investir em fiscalização nos espaços públicos e loteamentos abertos. Esse é o tipo de atividade que costuma ser impopular e, como todo brasileiro sabe, os políticos em sua maioria pensam mais na próxima eleição do que propriamente no bem da cidade.
Por isso, o tecido urbano das cidades está cada vez mais desorganizado, os entulhos se acumulam em terrenos baldios, os sacos de lixos transbordam em bocas de lobo e as edificações estão cada vez menos iluminadas e ventiladas naturalmente.
Neste ciclo viciado, cada vez mais as pessoas vão procurar refúgio momentâneo dentro de Shoppings e loteamentos fechados. Se a noção do espaço público como terra de ninguém prevalecer, então os centros tradicionais estarão condenados à decadência - o mesmo valendo para os loteamentos abertos e as periferias, sempre esquecidas pelos agentes públicos.
É isto que desejamos para as nossas cidades? Claro que não. Então precisamos comprar mais do que roupa e comida nos Shoppings: precisamos comprar as boas ideias que seus gestores privados talvez não queiram vender, mas que são de graça.
* Jean Tosetto é arquiteto e urbanista formado pela FAU PUC de Campinas, tem escritório próprio desde 1999 e é autor do livro "MP Lafer: a recriação de um ícone", publicado em 2012.
Veja também:
A casa conceito: idéias para construir em novos tempos
Inclusão via desenho universal
O espelho da democracia
V - Desenvolvimento urbano
I - A inclusão social pela mobilidade urbana
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Perfeito. Políticos deveriam entrar em contato com estas ideias. Certamente haverá algum político com capacidade intelectual para entender e com caráter para aplicar. Haverá?
ResponderExcluirCaro Horacio, talvez esteja na hora de mais urbanistas ingressarem na carreira política. A lamentar que os melhores profissionais não fazem isso. Abraços!
ResponderExcluirPerfeito, sou aluno de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal de Sergipe. Seu blog além de ser curioso possui um grande carácter crítico. É triste notar como nossa urbanização é precária e individual, percebo que um dos problemas Urbanos é a falta de profissionais presentes. Outro ponto é que o Arquiteto Urbanista não possui a valorização adequada, como diz o seu texto, podemos ser substituídos por cargos de confiança, por profissionais não especializados.
ResponderExcluirAnônimo, quando apresentamos um espaço para debate na Arquitetura e Urbanismo - mesmo que diminuto, dado que temos compromissos diários prementes - temos a intenção de alcançar o maior número possível de pessoas, para que algumas delas, quando estiverem em posição de certo comando, possam mudar alguma coisa. É um trabalho de formiga? Sim!
ExcluirNão vejo outra maneira de arquitetos e urbanistas serem gestores reais das cidades sem que os mesmos ingressem na política, esse meio tão criticado que, no entanto, é o único modo de interferir nos rumos de uma sociedade.