Alexander Sneiders nasceu na Letônia, sobreviveu à Segunda Guerra Mundial e encontrou no Brasil sua vocação como projetista de coberturas e estruturas de madeira para grandes vãos - um ofício em extinção.
Por Jean Tosetto
O Brasil é uma nação onde grandes figuras fazem sombras a outras pessoas igualmente geniais. No futebol, a fama de Pelé oculta até mesmo os louros para um craque mais tímido, como foi Ademir da Guia. E num país que tem Paulo Mendes da Rocha na Arquitetura, os brasileiros lembram-se apenas de Oscar Niemeyer. Talvez por isso, você provavelmente nunca ouviu falar de Alexander Sneiders, uma vez que sequer um diploma de arquiteto ele ostenta, mas sua experiência como projetista e construtor de grandes estruturas e coberturas de madeira é praticamente inigualável em quantidade e qualidade.
Sneiders trabalhou para grandes empresas como Mercedes Benz e General Motors; e também para arquitetos renomados, como Giancarlo Gasperini e Ricardo Julião.
Hangar em fazenda do Mato Grosso, projetado e construído com a consultoria de Alexander Sneiders. |
Sua origem, no entanto, em nada indicava que ele seguiria por este caminho. Alexander Sneiders nasceu outubro de 1931 na Letônia, uma pequena república banhada pelo Mar Báltico, no leste europeu, próximo da Rússia. Seu pai, Arvits, era oficial do exército e pôde lhe prover uma infância tranquila até a invasão do país por parte da Alemanha Nazista de Hitler.
A situação tornou-se insustentável quando a então União Soviética contra-atacou, transformando a Letônia num campo de destruição. Entre a cruz e a espada a família de Sneiders refugiou-se na própria Alemanha em 1943, já num ponto da Guerra no qual os aliados estavam contendo os avanços do Eixo, que era formado por alemães, italianos e japoneses.
Vivendo na condição de refugiados e dormindo em acampamentos desprotegidos dos bombardeios aéreos, o fim da Segunda Guerra em 1945 não trouxe o alívio esperado, pois a Europa como um todo precisava ser reconstruída e os recursos eram escassos.
No final da década de 1940 houve uma grande onda de emigração da Europa para os chamados países do novo mundo, entre eles Canadá e Estados Unidos, que aceitavam famílias com até dois filhos; a Austrália, que era longe demais; Venezuela e Brasil na América do Sul. Por não ter terremotos e situar-se mais abaixo da linha do Equador, o Brasil foi escolhido pelos letos, em 1949.
A travessia do Atlântico durou quase um mês e foi feita num navio cargueiro, que também transportava tropas americanas. Quando chegaram ao Brasil, os emigrantes ficaram de quarentena na Ilha das Flores, no atual estado do Rio de Janeiro.
O pai de Alexander assinou um contrato para trabalhar na lavoura de Anápolis, em Goiás. A família teria direito a um lote na colônia, mas após um ano sem conseguir adaptação, junto de outras duas famílias os Sneiders alugaram um caminhão para fazer a mudança até a capital de São Paulo.
A viagem no “pau de arara” durou uma semana e as pessoas dormiam ao relento, embaixo do caminhão. Quando chegaram ao Ibirapuera em São Paulo, eles não tinham contato prévio com ninguém e não sabiam sequer onde dormir. Os Sneiders alugaram uma casa na Vila Zelina e pouco depois foram morar no bairro de Santo Amaro.
Nesta época Alexander conseguiu emprego como jardineiro, indo morar na chácara residencial dos proprietários da fábrica de açúcar Ester. Foi quando um amigo que trabalhava na empresa Estruturas Hauff o convidou para fazer uma experiência como desenhista em 1951.
Autodidata, Alexander teve que aprender logo sua nova tarefa, pois seu primeiro trabalho foi passar a limpo o projeto da estrutura de cobertura dos estúdios cinematográficos da Vera Cruz em São Bernardo do Campo. Seu material de trabalho eram canetas a nanquim, lapiseiras, papel vegetal, réguas, borrachas, estiletes e prancheta.
Sua aptidão natural para o desenho o fez crescer dentro da firma, a ponto de uma empresa concorrente, a Fibrotécnica, lhe oferecer um salario quase dobrado para se transferir – o que ocorreu em 1954.
Nestes anos Alexander foi adquirindo conhecimento prático, não só para desenhar como também para calcular e projetar estruturas e coberturas de madeira. Para tanto, serviu-se do contato com engenheiros experientes e diversas visitas em canteiros de obras.
Desenho de tesouras de madeira concebidas por Alexander Sneiders. |
Detalhamento em corte de cobertura que usa telhas laterais de pedras piçarras importadas da Espanha. |
Planta geral de cobertura com detalhes técnicos desenhados por Sneiders. |
O vocabulário corrente que cercou tais anos incluía termos como parafusos, pregos, cavilhas e encaixes do tipo macho-e-fêmea; caibros, vigas e ripas de madeiras oriundas do norte e centro-oeste do Brasil; telhas cerâmicas ou de fibrocimento, com variadas inclinações e vãos cobertos. Sneiders aprendeu a conceber uma infinidade de detalhamentos em projetos e o modo correto de transmitir instruções para os carpinteiros, sem os quais nenhum trabalho poderia ser concluído.
Sem uma equipe competente e confiável, nenhum projeto vira realidade. |
Caminhão guindaste iça tesoura de madeira para galpão industrial em Itatiba, São Paulo. |
Com o tempo, Alexander passou a ser requisitado para fazer trabalhos fora da empresa, a ponto de amigos e clientes lhe encorajarem a abrir sua própria firma de projeto e execução de obras.
Em 1964, Sneiders e um sócio fundam a Paubrasil Engenharia Ltda. Os trabalhos foram se sucedendo a ponto de abrigar mais um sócio, 23 funcionários somente no escritório - entre engenheiros, projetistas, desenhistas técnicos e auxiliares - além de 80 carpinteiros nos canteiros de obras.
Logo a Paubrasil ganhou fama e as encomendas não pararam de chegar. Cada obra era orçada nos milhares de metros quadrados de cobertura e a carteira de clientes contava com empresas do porte da construtora Camargo Correa, do banco Bradesco e da indústria química Basf.
A Paubrasil, sob a direção técnica de Alexander Sneiders, chegou a cobrir vãos de até 40 metros com estruturas de madeira, através de tesouras – o método mais comum – e arcos. Os arcos de madeira que venciam grandes vãos exigiam conhecimento técnico que poucas empresas concorrentes dominavam, fazendo da Paubrasil uma referência no mercado brasileiro.
Por volta de 1974 a Paubrasil foi comissionada pela Ford para cobrir e fechar em Taubaté, no Vale do Paraíba em São Paulo, uma fábrica de motores, com a vultosa área de 120 mil metros quadrados. O resultado agradou tanto a direção da filial brasileira da Ford, que cada sócio da empresa foi agraciado com um Maverick zero quilômetro, retirado diretamente da linha de produção por valores que cobriam apenas meras formalidades.
Ao todo a Paubrasil cobriu cerca de 620 mil metros quadrados até o ano de 1980, quando Alexander vendeu sua parte na sociedade para o pianista João Carlos Martins. Sneiders sempre foi um profissional mais de campo do que de atividades burocráticas, e isso de certa forma o fez perder o controle administrativo da empresa, que havia criado, para os outros dois sócios. Além disso, havia recomendações médicas para diminuir o ritmo de trabalho.
Construção da fábrica da Quimbrasil em Uberaba, Minas Gerais. |
A cobertura conta com arcos constituídos de diversas vigas de madeira cortadas em raios e interligadas. |
As extremidades dos arcos descansam sobre colunas de concreto através de chapas metálicas parafusadas em tirantes. |
A grelha de concreto pré-moldado recebe os arcos de madeiras, em construção de 7.600 metros quadrados. |
A associação entre os nomes da Paubrasil e Alexander Sneiders era tão grande que, mesmo depois de mais de dez anos, ele foi procurado pela imprensa em função da Paubrasil, por intermédio de João Carlos Martins, que era amigo do político Paulo Maluf, ter ingressado no rol de colaboradores de campanhas eleitorais, em condições não permitidas pela lei da época. Sneiders teve que explicar que não tinha mais qualquer relação com sua antiga empresa.
Neste período, Alexander já havia criado a Arcotécnica, com apenas dois funcionários no escritório e 12 carpinteiros atuando nos canteiros de obras. A Arcotécnica tinha, portanto, um décimo do tamanho da Paubrasil, mas obteve igualmente grande êxito no mercado, trabalhando em obras de menor porte, é verdade, mas igualmente qualificadas.
Quando a Arcotécnica foi contratada por representantes do Vaticano para cobrir a fábrica de cimentos Santa Rita, em Cubatão, perto de São Paulo, Alexander Sneiders teve a oportunidade de estreitar contatos com o mestre Antonio Moliterno, professor da Escola de Engenharia da Universidade Mackenzie e autor do livro “Caderno de projetos de telhados em estruturas de madeira” – entre outras publicações de relevância semelhante para estudantes de Engenharia e Arquitetura.
Da amizade que surgiu desde então, Sneiders guarda o reconhecimento por parte de um professor universitário numa área que ele dominava na prática embora, por razões diversas, nunca tenha tido a oportunidade de sentar num banco de faculdade – primeiramente pela necessidade de garantir a própria subsistência, e depois para garantir a subsistência de suas empresas e funcionários.
Montagem da cobertura de um galpão de fertilizantes, também em Uberaba, Minas Gerais. |
Nesta obra para a Fertiza, as treliças de madeiras foram confeccionadas e estocadas no solo, e erguidas por guindastes. |
O fechamento do galpão, com telhas de fibrocimento, escondeu a beleza das estruturas de madeira. |
Na virada do milênio Sneiders diminuiu o ritmo mais uma vez, encerrando as atividades da Arcotécnica depois de projetar e cobrir quase 80 mil metros quadrados de construções. Ao longo de sua extensa carreira – iniciada como empregado em duas empresas, e posteriormente como sócio diretor em outras duas – Alexander Sneiders projetou e cobriu cerca de um milhão de metros quadrados.
Reprodução fiel de uma casa bandeirante, erguida na propriedade da Pirelli em Sumaré, São Paulo, com técnicas de telhado resgatadas por Sneiders. |
Já septuagenário, depois de dois casamentos e três filhos formados; Sneiders retomou uma antiga amizade com Laima, nascida também na Letônia, tendo migrado na mesma época para o Brasil.
Alexander, com mais de 80 anos de idade, continua trabalhando, agora como consultor e projetista para escritórios de Engenharia e Arquitetura, sempre usando sua prancheta, lapiseiras e canetas nanquins. Ele continua visitando obras e orientando carpinteiros.
Finalmente em 2012 ele e Laima deixam a capital de São Paulo rumo à Nova Odessa, no interior do estado, numa região com forte presença de descendentes de letos, em sua maioria seguidora da Igreja Luterana – uma confissão protestante com meio milênio de tradição.
Alexander e Laima em sua residência na cidade de Nova Odessa, em setembro de 2014. |
Foi ao fim de um dos cultos, num templo luterano de Nova Odessa, que tivemos o prazer de conhecer Alexander Sneiders – razão pela qual você acaba de ler um pouco da sua inspiradora trajetória de vida.
Nota de pesar
É com tristeza que comunico o falecimento de Alexander Sneiders, ocorrido às 19 horas de 24 de março de 2020 no Hospital Samaritano de Americana. O velório ocorreu na manhã do dia seguinte.
Em tempos de Pandemia do Coronavírus, com quarentena decretada no Estado de São Paulo, lamento profundamente por não ter comparecido ao sepultamento. Peço desculpas aos amigos e familiares.
Sneiders estava fazendo tratamento de um câncer na região do peritônio, em estado reincidente e avançado. Oficialmente ele contava com 88 anos de idade, embora tenha me confidenciado que era dois anos mais velho.
Que sua trajetória sirva de exemplo para os mais jovens e que Deus o receba no seio da Luz.
Veja também:
Excelente relato histórico!
ResponderExcluirObrigado pela leitura, caro Alan Cury!
ExcluirÓtimo relato, Jean Tosetto.
ResponderExcluirComo estudante de arquitetura, a visita em teu site é de LEI e como sempre com novos conteúdos de enorme importância para nós estudantes e futuros arquitetos.
Parabéns Jean!
Grato, caro Weliton.
ExcluirHoje em dia, após a regulamentação das funções dos engenheiros e arquitetos nos anos 60, e depois a adoção dos formulários de ART a partir da década de 1970, é praticamente impossível que alguém possa repetir uma trajetória na construção civil, nos moldes da carreira de Alexander Sneiders.
Portanto, reforço a importância de cursar uma faculdade de Arquitetura ou Engenharia para atuar no mercado. Nosso incentivo é sempre neste sentido.
Abraços!
Alem de toda essa competência profissional, é uma delicia ouvir suas histórias, principalmente embalado pelo farfalhar de vozes e talheres da comunidade Leta de Nova Odessa, em São Paulo. Foi assim ontem em um jantar especial com essa gente querida.... Obrigado Alexandre e Laima!!!
ResponderExcluirCaro Genesio, andamos pelas ruas e sequer imaginamos as histórias que as pessoas que cruzam o nosso caminho carregam. Tive a satisfação de registrar um pouco dessa riqueza imaterial neste artigo. Abraços!
ExcluirEstou emocionado. Tio Alexandre foi casado com minha tia e muito embora não tenhamos parentesco consanguíneo é emocionante conhecer alguém que fez parte da minha infância através das palavras de outra pessoa. Obrigado
ResponderExcluirCaro Marcelo, grato pelo contato. Não vamos publicar aqui, mas vamos encaminhar seu telefone para o Senhor Alexandre. Saudações cordiais.
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