O pneu careca transformado em balanço: modo rudimentar de converter o uso de um artefato. |
O uso de materiais reciclados na construção deve ser incentivado por arquitetos, mas sozinhos eles não irão muito longe, a não ser que sejam também empreendedores, construindo seus projetos para potencializar a divulgação dos resultados práticos.
Mensagem recebida em 16 de outubro de 2016:
"Boa noite Sr. Jean Tosetto!
O meu nome é Manuela Martins Pinho e estudo arquitetura na Faculdade de Arquitetura da Universidade do Porto, em Portugal. Estou no último ano do curso, e preparo-me para entregar a Dissertação, onde abordarei o tema da reciclagem na construção e formas inteligentes de transformação de entulho e materiais considerados "lixo" em materiais para construção, usados tanto na sua forma inicial como após transformação em outros materiais. Tentarei ainda reunir informação suficiente que me permita fazer uma abordagem ao tema da construção para todas as classes econômicas, relacionando assim os dois temas.
Tendo em conta um artigo seu, que encontrei online, "Novidades sustentáveis para construção", gostaria de lhe pedir algum apoio para melhor compreender e defender o tema, para o qual me falta ainda a tão importante experiência prática.
Pedia-lhe então alguma informação acerca dos materiais que já utilizou, e de que forma os utilizou, qual a sua experiência com novos métodos construtivos neste âmbito, assim como, se possível, alguma informação sobre a durabilidade e a resistência destes materiais face aos elementos naturais e ao tempo. De que forma podemos construir uma arquitetura mais social, para que todos tenham acesso a ela, e ao mesmo tempo, chamando a atenção das diversas culturas que, na sua maioria ultrapassam uma fase de crise a vários níveis, para a necessidade de mudança de percurso do ser humano no planeta, provando que o chamado "lixo" e "entulho" tem o seu valor e deve ser reutilizado.
Qualquer informação é bem-vinda.
Grata pela atenção,
Manuela Pinho"
Nossa resposta, dois dias depois:
Prezada Manuela Pinho,
Parabéns pela escolha do tema da reciclagem de materiais na construção civil para a sua dissertação. Os pioneiros nesta área de necessidade premente da sociedade colherão os frutos de tal iniciativa, tão breve as entidades governamentais e reguladoras das atividades correlatas despertem para a questão - e isso é questão de tempo, pouco tempo.
Realmente auxiliei uma jornalista numa matéria sobre as novidades sustentáveis para construção, e talvez tenha deixado a impressão de que faço uso recorrente de tais práticas em meus projetos.
De fato, tenho incentivado o uso de cisternas coletoras de águas pluviais para uso posterior não humano. Nos projetos de instalações hidráulicas que desenvolvo, mais de 90% já prevê o sistema de aquecimento solar da água, e estamos ingressando, junto com o engenheiro eletricista que trabalha comigo, na era das placas solares para alimentação de energia elétrica dos imóveis.
Mas, para ser intelectualmente honesto, devo reconhecer que o uso de materiais reciclados nas obras que acompanho ainda é muito ocasional, sendo irrelevante na minha produção arquitetônica - não por minha vontade, mas por imposição do mercado imobiliário, ainda conservador neste sentido.
Compreender as razões para tanto pode ser de alguma utilidade para a sua dissertação, então vejamos onde há a maior necessidade de construção para suprir o déficit habitacional no Brasil, dado que não conheço a realidade de Portugal.
Tapumes que isolam canteiros de obras e compõem barracos para guarda de ferramentas e produtos, usam madeira picotada oriunda de restos de outras obras. |
As classes menos abastadas dependem basicamente de financiamento bancário para aquisição da casa própria. O banco estatal Caixa Econômica Federal detém as melhores condições para os empréstimos em função de juros menores e prazos alongados para quitação dos imóveis. Porém, mesmo uma entidade pública - teoricamente mais caridosa - necessita de garantias de que os imóveis serão construídos a contento e que os financiamentos serão pagos. Para tanto, a instituição impõe regras que engessam os projetos e os métodos construtivos, restringindo as práticas inovadoras e as possibilidades para maiores experimentações.
Para um casal obter financiamento para a construção da casa própria, é preciso entregar para o gerente da agência uma série de documentos pessoais e comprovantes de renda. Já o projeto arquitetônico deve ser apresentado junto com memoriais descritivos e planilhas orçamentárias que especificam marcas e valores dos materiais que serão empregados na obra. Propostas que resultam em obras muito baratas, ou muito caras, caem numa espécie de malha fina dos analistas, que invariavelmente pedem correções até que se atenda um padrão convencional aceitável.
Se os materiais reciclados tem o atrativo dos custos mais baixos, fica difícil comprovar os valores reais quando não há referências estabelecidas no mercado. E mesmo que o projeto seja aprovado deste modo, durante as fiscalizações mensais por parte de engenheiros ou arquitetos enviados pela instituição financeira, notas fiscais podem ser exigidas por amostragem. Sabemos que boa parte dos materiais reciclados ainda é operada de modo informal, o que dificulta a emissão de notas fiscais comprovatórias das origens de cada componente.
Para que o uso de materiais reciclados fosse mais difundido, seria necessário que o governo liberasse linhas de crédito voltadas para obras de pequeno porte, de iniciativas familiares. A realidade, no entanto, é diferente: a maior parte do dinheiro disponível para o financiamento de obras residenciais acaba em poder de grandes construtoras de casas populares e prédios de apartamentos, que se valem dos mesmos projetos de norte a sul do país, independente das diferenças culturais e climáticas de um território continental. O agravante é que tais projetos já eram considerados ultrapassados na década de 1960, mas como geram lucros exorbitantes para as incorporadoras, continuam sendo difundidos indiscriminadamente.
Na outra ponta do espectro social, vemos que as classes mais abastadas são propícias às novidades do mercado, mais por modismo do que propriamente por idealismo - quando o idealismo entra na pauta, atua mais como uma válvula de escape para o sentimento de culpa que alguns ricos sentem, do que como uma vanguarda a ser difundida.
Como reflexo dessa abordagem mais emocional do que racional para uso de materiais reciclados nas obras, os mesmos possuem os seus conceitos e utilidades distorcidos, quando muito deles deixam de ser estruturais, por exemplo, para ser meramente decorativos. É o caso dos adobes - grande tijolos de argila prensada - comprados em depósitos de materiais de demolição por um alto preço por unidade - que ao invés de sustentar uma parede externa da casa, se convertem em revestimento de balcões de churrasqueiras, cada vez mais presentes nas varandas dos quintais brasileiros.
Lembro de ter visto uma reportagem na TV, num quadro com dicas de decoração, que mostrava a suíte de um casal onde a cama tinha como cabeceira uma antiga folha de porta social, feita com madeira de lei toda entalhada. Obviamente o custo daquela cama era muito superior ao custo de uma cama convencional, distorcendo a razão econômica original do uso de materiais reaproveitados. E deste modo os exemplos se sucedem, com peças descartadas como lixo por uns, sendo rearranjadas como artigo de luxo por outros, sem que isso alcance uma gama maior de consumidores conscientes.
O revestimento cerâmico acima desta pia imita a estampa de antigos ladrilhos hidráulicos. |
Por vezes, os modismos geram reproduções industrializadas das peças, quebrando a lógica da reciclagem dos materiais. É o caso dos antigos ladrilhos hidráulicos portugueses, vendidos originalmente em peças pequenas, cujas estampas foram copiadas e rearranjadas em grupos impressos em peças maiores. O resultado visual é parecido, mas estamos tratando de uma decoração totalmente fake.
Creio que o uso de materiais reciclados na construção deve ser incentivado por arquitetos, mas sozinhos eles não irão muito longe, a não ser que sejam também empreendedores, construindo seus projetos para potencializar a divulgação dos resultados práticos.
Empreendedores natos são bem vindos nesta equação. Neste âmbito, tive a oportunidade de desenvolver o projeto de uma fábrica de asfaltos em Paulínia, estado de São Paulo, que usa pneus picotados de automóveis como parte da matéria prima de seu produto para pavimentação de ruas e rodovias. A armazenagem deste componente é de alto risco, pois trata-se de um material facilmente inflamável, cujo incêndio, se iniciado, é praticamente impossível de ser contido até que se queime todo o depósito.
Há alguns anos tive a oportunidade de conhecer pessoalmente uma fábrica que produz máquinas para trituração de restos de madeira em Itapetininga, também no interior de São Paulo. Os picadores da Nicoletti são de pequeno porte e podem ser facilmente levados para canteiros de obras, para cuidar das sobras das madeiras usadas em formas de componentes estruturais e escoramentos de lajes. Inicialmente o produto resultante de tal processo era usado meramente na composição de tapumes que isolam outras obras, mas já existem painéis de madeira picotada em motivos decorativos numa grande rede de academias de ginástica e até mesmo como revestimentos acústicos em igrejas e salões de convenções.
As arquibancadas do velho estádio do Palestra Itália ocupadas pela última vez, em partida amistosa do Palmeiras com o Boca Juniors da Argentina, disputada em julho de 2010. |
Para encerrar, cito um caso pitoresco, envolvendo a rivalidade de dois grandes clubes de futebol de São Paulo e do Brasil. Há alguns anos o Palmeiras demoliu seu antigo estádio para construir, no local, uma moderna arena multi-uso. Boa parte do entulho de suas velhas arquibancadas foi processada numa usina de Guarulhos, gerando agregados que foram aproveitados na construção do estádio do Corinthians, onde foi disputada a partida inaugural da Copa do Mundo em 2014.
A divulgação de um exemplo emblemático como esse ajuda a difundir o conceito da reciclagem dos materiais na construção civil, com dividendos em prol da sustentabilidade.
Desejo sucesso para você em sua dissertação.
Atenciosamente,
Jean Tosetto - Arquiteto
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